V Como um lírio entre os espinhos,
R. Assim a minha predileta entre os filhos
de Adão
A Imaculada Conceição, lírio
entre os espinhos
Acompanhemos
o Pe. Tiago Nouet, jesuíta do século XVII, em seu brilhante comentário à
passagem do Cântico dos Cânticos (II, 2), que deu origem ao louvor aqui
tributado a Maria Santíssima. Assim se exprime aquele douto pregador:
“A
concepção de todos os homens que nascem pela via ordinária da geração, é
acompanhada de três grandes desordens, a saber: a privação da graça
santificante que nos torna filhos de Deus; a privação da justiça original, que
consiste numa perfeita subordinação da parte inferior à parte superior do
homem; e um violento pendor que temos para o mal, unido à dificuldade que
encontramos na prática do bem.
“Ora, a
concepção da Bem-aventurada Virgem foi isenta de todos esses infortúnios, por
um singular favor de Deus, que a distingue de todas as outras, e faz aparecer
Maria entre os filhos dos homens, como o lírio entre os espinhos. Ela foi
concebida no estado de graça, na justiça original, isto é, numa perfeita
subordinação de todas as suas potências à razão, e desta a Deus. Ela foi
concebida sem qual quer inclinação para o mal, e com uma forte tendência para
toda sorte de bem. [...]
A única sem o labéu do pecado
“O
lírio é belo em virtude de sua brancura; os espinhos não têm beleza alguma. É a
primeira diferença entre a concepção da Bem-aventurada Virgem e a de todos os
filhos de Adão, que nascem no pecado, cujo labéu os torna objeto de abominação
diante de Deus. Porque ninguém está isento de mancha, nem mesmo o recém-nascido.
Somente da Bem-aventurada Virgem pôde dizer o Espírito Santo: «Sois toda
formosa; em vós não há mácula».
“Sois
toda bela, não em parte, mas toda, sem exceção e sem reserva. Não há, portanto,
nódoa alguma em Vós, nem de pecado venial, nem de pecado mortal, nem de pecado original.
Nunca houve, e jamais haverá. Sois e sereis sempre cheia de graça. [...]
Isenta dos espinhos da
concupiscência
“O
lírio não tem nó, tudo nele é suave e liso, desde a haste até à flor. Os
espinhos, pelo contrário, são rudes e picantes, furam e dilaceram quem os toca.
“É a
segunda diferença entre a concepção da Bem-aventurada Virgem e a de todos os
homens, que estão sujeitos aos picantes aguilhões da concupiscência, da qual
Ela foi inteiramente isenta. [...]
“Com
efeito, exigia a honra do Filho de Deus e a de sua Santíssima Mãe, que Esta
tivesse um tal domínio sobre suas paixões, e que a par
te
inferior de sua alma fosse de tal maneira submissa à razão que, não só não
cometesse Ela pecados atuais, mas também que não pudesse pecar. [...j .
“Admirai,
pois, o privilégio de Maria que, única, recebeu este singular favor: n’Ela
nunca reinou nem habitou o pecado. [...]
Fortíssima inclinação para o bem
e completa aversão ao mal
“O
lírio é aprumado e se eleva muito alto. Não há flor que tende a se afastar mais
da terra, enquanto que os abrolhos e os espinhos nesta rastejam.
“É a
terceira diferença entre a concepção da Bem-aventurada Virgem e a do comum dos
homens, que o pecado original abandona como vítima à cegueira do espírito, à
malícia do coração, à fragilidade da carne, ao desregramento das paixões e à
desordem dos sentidos e da imaginação, donde nascem este pendor que temos para
o mal e a dificuldade que sentimos na prática da virtude, este apego que temos
à Terra, e o trabalho que nos custa o dirigir nossos pensamentos às coisas
celestes. Porém, a plenitude da graça que a Bem-aventurada Virgem recebeu no
momento de sua concepção tinha dois efeitos inteiramente opostos. Esta Lhe dava
uma suavíssima e fortíssima inclinação para o bem, e uma extrema aversão ao
mal; um maravilhoso pendor para o Céu, e um perfeito desapego de todas as
coisas da Terra. Pois, como diz São Tomás, pode-se considerar a santidade,
enquanto nos aproxima de Deus, e é a caridade; ou enquanto nos afasta do mal, e
é a pureza. Uma e outra existiram em Maria num grau eminente, mas com esta
diferença: que Ela podia crescer em caridade até ao último suspiro de sua vida;
porém, quanto à sua pureza, estava Ela no último grau de excelência, e, abaixo
de Deus, não podia haver maior” 1
Glória do jardim de espinhos
Assim,
compreendemos o cântico do monge e poeta medieval, Adão de São Vítor:
“Salve,
pois, ó Mãe do Divino Verbo, Flor que brotou entre os espinhos, sem espinho;
glória do jardim de espinhos, O espinheiral, somos nós; fomos ensanguentados
pelos espinhos dos pecados. Mas, para tua pessoa, não existem espinhos” 2
Lírio que nunca foi espinho
E Santo
Afonso de Ligório, comentando a invocação Mater purissima, da Ladainha
Lauretana, escreve: “Esta Virgem Mãe ... é chamada lírio entre os espinhos.
Todas as outras virgens, diz Dionísio o Cartuxo, são espinhos, ou para elas
mesmas ou para os outros; mas a Bem-aventurada Virgem nunca foi um espinho, nem
para Ela, nem para os outros, pois a todos os que A fitavam, Ela só inspirava
sentimentos puros e santos. Além disso, o autor que escreveu a Vida de São
Tomás de Aquino, relata que o santo Doutor dizia que as próprias imagens de
Maria extinguem os ardores da concupiscência naqueles que as contemplam com
devoção. E São João de Avila atesta que muitas pessoas, tentadas contra a castidade,
conservaram-se puras pela devoção a Maria” 3
1) NOUET, Tiago. L’Homme d’oraison, Méditation pour
le jour de la Conception Immaculée de la B. Vierge. Apud JOURDAIN, Z.-C. Somme des Grandeurs de Marie.
Paris: Hippolyte Waizer, 1900. Vol. V. p. 92-95.
2) SÃO
VÍTOR, Adão de. Prosa per
l’Assunzione della B. M. V Apud ROSCHINI, Gabriel. Instruões
Marianas. São Paulo: Paulinas, 1960. p. 133.
3)
LIGÓRIO, Afonso Maria de. Oeuvres Complètes. 10. ed. Tournai: Casterman, 1880. Vol. VIII. p. 180.