Continuação da história de Nossa Senhora do Pilar
Primórdios do atual Santuário
Poucas são as notícias das quais dispomos sobre o
acontecido a partir desse momento, a não ser que, para conservação
do valioso Pilar — com esse nome passou a ser conhecida, mais
tarde, a celestial coluna —, São Tiago e os seus ergueram uma
minúscula edícula, que foi conservada tal qual até a reforma da
Basílica, realizada em meados do século XVIII. Construída em
adobe, no sentido paralelo à muralha da cidade, tinha ela quase
quatro metros e meio de cumprimento por pouco mais de dois de
largura.3
É de se supor também que, embora o culto às imagens
ainda não estivesse estabelecido na Igreja, tenham eles colocado
sobre a coluna alguma efígie de Maria Santíssima, pois, caso
contrário, almas recém-saídas das trevas do paganismo facilmente
poderiam torná-la objeto de um culto fetichista, como não era raro
acontecer na época com peças semelhantes. Outros, entretanto,
acreditam que também uma imagem foi entregue por Nossa Senhora a São
Tiago, quiçá a mesma que até hoje é venerada no local.
De uma forma ou de outra, não se fizeram esperar os
frutos da pregação do Apóstolo e seu pequeno grupo de seguidores.
A partir daquele momento a Fé começou a vingar com força tanto em
Saragoça quanto no resto da Península Ibérica. Já São Paulo nos
fala da existência de uma Igreja na Espanha (cf. Rm 15, 24) e são
constantes as referências a ela no decorrer da História. E quando,
no século IV, se iniciou a perseguição de Diocleciano, Santa
Engrácia e seus companheiros escreveram com seu sangue naquela
cidade o belíssimo episódio dos “inumeráveis mártires”,
narrado pelo poeta Prudêncio em sua obra Peristéfanon.
O Pilar, inabalável durante
dois mil anos
Fundada pelos iberos no terceiro século da Era Antiga,
Saragoça experimentou ao longo de sua multissecular história o
influxo de diversas raças e culturas, que modelaram aos poucos o
caráter de suas gentes.
Cerca de 15 anos antes do nascimento de Cristo,
transformou-se em uma cidade romana tomando, em honra ao Imperador, o
nome de Cæsaraugusta. Foi mais tarde habitada por visigodos,
conquistada por muçulmanos, reconquistada pelos cristãos, e, em
tempos mais recentes, dominada pelos franceses durante a invasão
napoleônica.
Mas, em meio a todas essas vicissitudes, algo se manteve
inalterado a despeito de tanta desgraça. Desde o século I da Era
Cristã até nossos dias, lateja no coração dos saragoçanos a Fé
católica professada sob o manto de Nossa Senhora do Pilar, devoção
que nem as furibundas perseguições romanas, nem a dominação
visigótica, nem o orgulho da heresia ariana, nem a invasão
sarracena, nem as baionetas do exército de Napoleão, carregadas de
ódio revolucionário contra a Religião, conseguiram destruir.
Perante os vagalhões da História, impulsionados amiúde
por uma sanha anticristã, o Pilar e o culto à Santíssima Virgem
permaneceram inalterados, por mercê da especial proteção
profetizada pela Virgem Santíssima no momento de sua aparição.
Intolerância dos almorávides
Deixemos para outra oportunidade os interessantes fatos
ocorridos durante as dominações germânicas, e situemo-nos na
segunda década do século VIII, quando, aproveitando-se da
decadência da dinastia visigoda, os guerreiros do Islã conquistaram
a quase totalidade da Península Ibérica. Dependendo das
circunstâncias concretas com que se encontraram em cada lugar, os
novos senhores das Espanhas impuseram condições muito diversas à
prática da Religião Católica, as quais variavam desde a
perseguição declarada até uma tolerância benévola.
Na cidade de Saragoça, o culto foi autorizado, embora
com pesadas restrições, entre elas a proibição de fazer qualquer
reparo nos templos, o que leva a perguntar-se qual seria o estado
desses edifícios, à medida que as décadas e os séculos fizessem
sentir sobre eles os seus efeitos...
Quase quatro séculos levava a cidade de Saragoça sob
domínio sarraceno, quando em 1118, um rei jovem e empreendedor —
Alfonso I, o Batalhador — acometeu a reconquista da cidade. O Bispo
Dom Bernardo, há pouco expulso da sé cæsaraugustana pela crescente
intolerância dos almorávides, acabara de falecer e, para
substituí-lo, o monarca propôs ao Papa da época, Gelásio II, a
nomeação de um virtuoso clérigo francês chamado Pedro de Librana.
O próprio Sumo Pontífice, que se encontrava então no sul da
França, conferiu-lhe a ordenação episcopal e cumulou de benefícios
espirituais aos que outorgassem esmolas para reparação da cidade e
da sua igreja.4
Retomada por fim a cidade, o novo Bispo pôs-se a campo
para tornar efetivo o desejo, manifestado pelo Santo Padre, de
promover-se a restauração do vetusto templo. Entre outras
providências, enviou uma carta a todos os fiéis da Cristandade, na
qual menciona aquela “igreja da gloriosa Virgem Maria” como
“prevalente e antecedente a todas por sua antiga e bem-aventurada
nomeada de santidade e dignidade”.5 Outros documentos da época
também certificam que a catedral dessa diocese estava dedicada à
Bem-aventurada Virgem Maria.6
Ora, se no século XII esse templo era conhecido em toda
a Europa, como atesta a naturalidade com a qual Dom Pedro de Librana
fala dele em sua carta, não há como negar sua existência anterior
à invasão sarracena. Pois se nesse período de quatro séculos,
como vimos, a ninguém foi permitido fazer qualquer reforma nos
templos cristãos, a fortiori estava proibido edificar um novo.
A partir desse momento, a história da Igreja de Santa
Maria de Saragoça, como então era conhecida, pode ser acompanhada
através dos documentos que atestaram os fatos mais importantes ali
ocorridos. Destes, destacaremos apenas dois que confirmam a profecia
feita por Nossa Senhora em sua aparição ao Apóstolo São Tiago: “A
coluna permanecerá neste lugar até o fim do mundo”.
A invasão napoleônica
Uma das fases mais dramáticas da história da Espanha
se deu no início do século XIX, quando as tropas de Napoleão,
imbuídas do espírito anticristão que dominou a França na virada
do século anterior, ocuparam a nação espanhola.
Saragoça foi uma das cidades mais afetadas pela
invasão. Duas vezes sitiada pelo exército francês, opôs heroica
resistência ao primeiro cerco e sofreu inenarráveis tormentos
durante o segundo, no qual as tropas napoleônicas usaram um
desproporcionado arsenal de recursos bélicos, visando sujeitar
aquele povo indômito que, como diria o marechal francês Suchet,
“lutava diariamente pé a pé, corpo a corpo, de casa em casa, de
um muro a outro, contra a perícia, a perseverança e o valor sem
cessar renascente de nossos soldados”.7
Para sustentar esta desigual luta, os aragoneses
auferiam a necessária energia aos pés da Virgem do Pilar, como
testemunharam os próprios invasores. Assim se exprimiu um oficial
galo, descrevendo uma situação na qual a resistência dos
saragoçanos parecia insustentável: “Sabíamos que a agitação na
cidade crescia por momentos, que o clero continuava sustentando a fé
nos milagres, e que a imagem da Virgem não tinha ainda sido descida
de seu Pilar. O povo tinha uma fé tão viva e punha tal confiança
naquela sagrada Imagem que não podíamos esperar subjugá-lo sem
antes ter arruinado seu venerado templo”.8
De fato, a obstinada resistência daquele povo só foi
vencida quando o esgotamento, a fome e as epidemias já não
permitiam aos escassos sobreviventes da cidade em ruínas sequer
levantar as armas. Elevando-se a quarenta mil o número de mortos,
foi assinada a capitulação. Mais uma vez, e de forma providencial,
a imagem da Virgem Santíssima e a já então Basílica não sofreram
maior dano do que a desavergonhada espoliação de todas as suas
peças e joias de valor. O Pilar
permaneceu em pé como símbolo da inquebrantável Fé do povo
aragonês.9